Por Me. Cláudio Fernandes
Quando se estuda Idade Antiga, a civilização fenícia possui muito destaque, sobretudo quando se trata das guerras que os romanos promoveram contra Cartago (Guerras Púnicas), a principal cidade construída pelos fenícios, situada no Noroeste da África. Além disso, a criação do primeiro alfabeto
– as famosas inscrições fenícias – e as intensas rotas de comércio
marítimo destacam ainda mais a importância dessa civilização.
Contudo, em alguns momentos da história
aparecem recorrentemente algumas teorias mirabolantes relacionadas a
essas antigas civilizações. Uma delas refere-se especificamente aos
fenícios, ou melhor: a indícios da presença dos fenícios no Brasil.
Essa teoria é fruto de uma conjunção de fatores que leva em conta:
lendas europeias antigas, anteriores à descoberta do Brasil, e os
achados arqueológicos em terras brasileiras, que só seriam
satisfatoriamente explicados a partir do avanço dos estudos
arqueológicos no século XX.
O imaginário europeu anterior às grandes
navegações dos séculos XV e XVI, e do consequente descobrimento do
continente americano, concebia uma série de lendas a respeito de
civilizações perdidas e de grandes aventuras além mar, isto é, incursões
marítimas através do Oceano Atlântico, até então pouco explorado. A
história da ilha perdida de Atlântida é a mais famosa dessas lendas.
Os fenícios eram exímios comerciantes
marítimos e haviam conseguido estabelecer rotas por praticamente todo o
mar mediterrâneo. Por esse motivo, os europeus imaginaram a mítica
fundação de uma colônia fenícia numa ilha do Atlântico – não havia a
perspectiva de que pudesse existir um continente além mar. Essa ilha
faria parte de regiões desconhecidas desde a época do dilúvio, relatado
pelo Gênesis.
Após o descobrimento do Brasil e o
processo de colonização, os primeiros estudiosos europeus que fizeram
expedições pelo sertão nordestino se depararam com achados arqueológicos
bastante impressionantes, sobretudo inscrições e pinturas rupestres. As
mais famosas destas inscrições rupestres são as itacoatiaras (“pinturas
em pedra”, em tupi-guarani) de Ingá, no estado da Paraíba.
As inscrições rupestres nas rochas de Ingá, na Paraíba, contribuíram indiretamente para a lenda da presença nos fenícios no Brasil.2
Segundo informações da arqueóloga Gabriela Martin, em sua obra Pré-História do Nordeste do Brasil,
as inscrições rupestres de Ingá se “converteram”, na segunda metade do
século XIX, em inscrições fenícias. Isso se deu, em parte, porque a
grande autoridade em arqueologia no Brasil naquela época, Ladislau
Netto, acreditou que isso pudesse ser verdade. Netto teve contato com
uma suposta transcrição de inscrições fenícias que teriam sido
encontradas por alguém chamado Joaquim Alves da Costa, no município de
Pouso Alto, no vale do Paraíba, e enviadas ao Marquês de Sapucaí,
diretor do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) na época.
Sabe-se hoje que o município de Pouso Alto
e Joaquim Alves da Costa jamais existiram e que as supostas inscrições
fenícias eram, na verdade, as itacoatiaras de Ingá, referidas acima.
Provavelmente alguém que conhecia o Marquês de Sapucaí e Ladislau Netto
lhes enviou a transcrição de um texto fenício qualquer, sugerindo, de
má-fé, que tivesse sido encontrado em rochas da Paraíba. Ladislau Netto
havia estudado na Europa e foi aluno do grande arqueólogo Ernest Renan,
especialista em arqueologia fenícia, o que dava ainda mais credibilidade
à história da presença dos fenícios no Brasil. Entretanto, em 1875, num
artigo intitulado “Inscrição Phenicia”, L. Netto admitiu que tinha sido
vítima de uma fraude e reconhecia que não havia provas concretas sobre a presença de fenícios no Brasil.
Ainda segundo Gabriela Martin, outra
personalidade que contribuiu para a lenda da presença dos fenícios no
Brasil foi Ludwing Schwennhagen. Schwennhagen era austríaco e tinha um
interesse excêntrico pelas pinturas rupestres e pelas estruturas dos
achados arqueológicos no Nordeste do Brasil. Esteve no Brasil nas
décadas de 1910 e 1920, dando aulas e viajando pelo sertão. Esse
pesquisador austríaco unia métodos de arqueologia com as fantasias de
lendas antigas, como a lenda das Sete Cidades (uma lenda que surgia na
Península Ibérica, na Idade Média, por volta do século VIII, que versava
sobre a vigem do último rei dos Visigodos para fundar uma civilização
no além-mar, conhecida como Sete Cidades) e a lenda da cidade mítica de
Tutoia, no vale do Paraíba. Nesta última, segundo Schwennhagen, os
fenícios teriam se unido a troianos e construído várias cidades, dentre
as quais, a mais importante: Tutoia.
Essas histórias fantasiosas só foram
possíveis, em grande parte, por conta da falta de sofisticação das
técnicas de datação arqueológica, que só em meados do século XX seriam
desenvolvidas e aqui aplicadas. Mas, como se percebe com as informações
acima, as lendas antigas, motivadas pelo mistério gerado pela imensidão
do Oceano Atlântico, anterior à descoberta da América, também
contribuíram para que o imaginário ficasse por um bom tempo ocupando o
lugar das explicações mais rigorosas.
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